terça-feira

Teu barco: deriva ao avesso

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Ao avesso a lida
Da vida não espera
Espessa ao laço que lança

Renasce miúda em cada grão
Passo a passo da infância
Em teu barco deriva.

Pelo avesso a vida
Insiste efêmera
Sem véu ao desencontro

Ao abandono ao outro lado
O avesso, não escova, não se esconde
Infiltra feito delicadeza transbordada.

Tanto desejo desse avesso
Virar água mole pedra dura
Brisa leve

Leve bruma
Salgada em saudades
De beijos de alaúde.


*

Dentro da mulher
Habita o avesso
Das águas rosas,
Lilases em seus
Raios difusos

Perpetuando as pedras
Marinas sendo ela a
Água que bate e dura
Na insistência efêmera

Habita dentro a si mesma
Sem véu nua ao desencontro
Ao avesso, infiltra
Delicadeza transbordada

Habita aquela
Que se faz orquídea
Suspendendo as pétalas
Em qualquer moradia segura

Habita aquela dos ares
Com duas asas proteção
E ninho, habita:
Aquela submersa
Sendo em ti corpo
de embarcação para a infância.

Habita uma memória
Incontida de silêncios
Os astros em seu
Campanário noturno

Onde faz do céu
Os trajetos para sua
Saga de sol
Desejante

Selvagem a onça que
Habita ora nas lobas
Abandonadas feitas
Apenas para amar. 

quarta-feira

Arremedo ao medo de não estar


* * * * * * * * *

A primeira semente, vésper, o badalar do sino, a cidade se arrefece num duplo, apenas sou quem não me encontra, desdizer que refizemos os séculos e colheremos morangos fora da estação. Desdizer o não dito isto já semeia no embalo da rede. Precisei nascer antes que meus passos tomassem outros rumos, brisa leve já esqueci, primeira semente colhida no pântano alagado do olhar.

Parece simples jogo do ocaso essa voz que se artimanha nas sílabas ao meu redor, parece fácil supor que o lugar da origem esteja a beira de um precipício. Não a vontade de traçar contornos de arremedar a linha do horizonte de mapear as ruelas da cidade de minha adolescência, não querida, deixa o mar escorrer devagar, devagar no ritmo em que fizemos faríamos as preces das colheitas dessa estação, num canto uníssono os passos guiados ao sul. Arremedo ao medo de não estar.

* * * * * * * * *


 Não são quebradiços vitrais dentro do olhar apenas os laços oblíquos onde festejo saber sua presença fora de mim. Estar a olhar o breve traço que se insinua e sempre me esqueço do momento, é aqui entre as válvulas salientes, este estar tão perto, movediço, chão onde não estanco mais. Descreves o ato e essa contracultura de eclipses e solares a embalar a rede teus olhos verdes.

Preciso da nota que lhe arranque do coração a compaixão de um enxame de humanos que falam a mesma língua, eu não os entendo, minha fala sonâmbula, tão antiga.


* * * * * * * * * 

Fácil supor o feminino em sua instância de afogamento, sobre as outras, para que irias querer uma mulher, para grifar suas mãos entre jaulas e cabedais de desculpas interrompidas. O amor se desfaz antes de iniciar, sei bem, sei bem chorar pelas tréguas desfeitas e pelos jardins de um inverno recolhido.

Dizer-me nego tudo tão já, me nego
E antes de negar sou mesma quem disse
Essa não palavra nostalgia ou saudades


* * * * * * * * *



Só simplicidades no apenas entre a casa em redomas
Seus passos nus ao meu redor enquanto dissimulavas no tempo imperial
Olhe e apontava antes da nomeação
Um mapa impreciso, uma mapa antes da separação.
As coisas nunca são uma só, os acontecimentos nunca se dão sozinhos, uma sucessão antecede qualquer culpa. Agora entendes porque era mais fácil apenas um olhar leve para fora. Não haveria as limitações dentre esse local. A casa essa tanto que qualquer outra vez nunca pude contar, a casa antes e poderia dizer sem abalo sísmico, a corrente haitiana, perde-se tudo, não amores tão fortes, não há. Nesse lapso de tempo em que não estivemos, quando mesmo juntos somos como cegos dançando a matriz de um gozo impossível, existe o momento, o sinal antes da bomba, a cidade antes da invasão inimiga, o minuto que antecede a morte, ou o beijo, esse instante que você se esquece de captar e flui enquanto me ler. Simples e ao mesmo tempo elo complexo que antecede toda uma vida. 


* * * * * * * * *

As primeiras letras são paisagens rupestres


    
 As primeiras letras são paisagens rupestres

o suspiro parece mais agudo alto
ouço pelas margens
altissonante até a vertigem das névoas destoadas
para essa emoção qualquer cura asa de vento
fuga ou minerais que cicatrizam as escavações
ferida em ouro brilhante.
                       
                            
era outra vez todo ouro retirado em cetim
o linho branco dos impérios
que atiravam em precipícios amores
por suas dores em cantos
espraiados pela peça de uma engrenagem
que faça rodas da dor
que faças curvas e peripécias ao destino.

Desenterrem as violetas e as rosas ainda por desabrochar
Qual mão chega a empunhar a bandeira de um desengano
A empunhar a faca para o corte da cicatriz mais profunda
Qual mão ainda confie cega que chega a adormecer
O mais singelo e perfumado sonho.

O corte brilhante daquele sangue espesso cicatrizei
com as nadadeiras de um mar profundo.
Quantas profundezas a sondar os mistérios.
Os minérios do pensamento.







 A cicatriz em que se insinua o gosto de amar

Os amores se insinuavam aos meus passos? Caminhar cegamente
com medo de reaver novamente aquele alto suspirar.
Só sabia findar numa espécie de perda secreta,
só sabia da pedra esverdeada do olhar
altissonante num vocabulário estrangeiro 
que sonha em outra língua. Só sei, sonhei com isso, 
as solas secas dos pés 
rabiscando o território da volta, voltaríamos para a casa seguros.
Voltaríamos para a casa seguros?
Amaria os naufrágios
Eu sei você também tem um mar inteiro dentro de ti
Haveria volta nessa mesma hora,
quando uma mulher, uma outra,
estudava o turismo de regiões terrestres,
preferiria os lados orientais, uma certa cultura em que ela achará panos coloridos para cobrir nas rendas de um vestido também em tons fortes desenhados. A mesma mulher me olhará de soslaio entre a saída e a entrada de alguma passagem do aeroporto internacional. Turistas embriões do mundo, nos todos, essa mesma, num espelho decifrou minha alma e tudo começou naquele instante. E me demoro a decorar o passado. A perda desse amor movediço em água e sangue e areias exiladas.
Esse amor se insinua, insinua-me a ele.




terça-feira

Caminho (por Adonis).


CAMINHO

Caminho e atrás de mim caminham as estrelas
até seu próximo amanhã
o segredo, a morte, o que nasce, o cansaço
amortecem meus passos, avivam meu sangue.

Não iniciei a trilha, ainda

não vejo nenhum jazigo
caminho até mim mesmo, até
meu próximo amanhã
caminho e atrás de mim caminham as estrelas.

***

AMOR

Me amam o caminho, a casa
e na casa uma jarra vermelha
amada pela água,

me amam o vizinho
o campo, a debulha, o fogo,

me amam braços que trabalham
contentes do mundo descontentes
e os arranhões acumulados no peito
exaurido do meu irmão atrás
das espigas, da estação, como rubis
mas rubros que o sangue.

Nasci e nasceu comigo o deus do amor
- que fará o amor quando eu me for?


***

1. 


Manhã

        como tinta a manhã
        saindo do sangue da noite
        traça o rosto do espaço
        escreve o estado de seus amantes.
Nela me funde
a química da ferida.

2.


Acordei perguntando à aurora sobre você:

Já acordou?

Vi seu rosto desenhado em cada galho

em volta da casa.

Tirei dos ombros a aurora: Será que ela veio

ou é o sonho que me confunde? Perguntei

ao orvalho nos galhos

e ao sol: Ela leu

         teu passo,

         astro?

Que parte da porta você tocou?

        como foram parar ao seu lado
        as rosas e as árvores da casa?

Estou a ponto de dividir os meus dias, a ponto de dividir-me:

de um lado o sangue, de outro o corpo - 

        folhas num mundo seco

        arrastadas pela fagulha.


3. 


A mão da noite

        não bateu à nossa porta
        não abriu nossa porta
nos esqueceu, acendeu
        uma luz dentro de nós
        e a luz fez tremer seus faróis,

nos inundou nos devastou nos marcou as entranhas

       tudo o que a luz não via
       e as palavras não diziam. 


***

FIM DO CÉU

Sonha em jogar os olhos nas
profundezas da cidade próxima
sonha em dançar no abismo
em ignorar os dias que devoram
as coisas, os dias que engendram as coisas
sonha em te levantar, em fluir como o mar
em apressar os segredos
começando um céu
no fim do céu.
                                                                                                 



ADONIS *



*Nascido em 1930, na Síria, publicou dezenove títulos de poesia além de ensaios e traduções. 



As aves



     Como dizer o motivo como desvendar a razão se não outra forma de libertação que já havia chegado, podemos traçar os mesmos caminhos e escorregar sempre nos mesmos vãos. Eles sempre estarão aí, não por que o caminho seja uma espécie de nebulosidade mas porque a vida sempre nos toca no tecido de ramas do coração. E todo coração é a mesma ferida aberta, a ferida maior que pulsa sempre e não dá trégua. Preciso fazer as pazes com meu coração e aceitar aquilo que todos julgavam inaceitável: a perda no susto e no sopro maior da vida.
     Eu vim, e cheguei com as pétalas abertas no peito, eu cheguei como todas as esperanças de amor. E nele os pássaros de uma noite de inverno muito longa ainda faziam morada. Vivemos em países diferentes em terras ditadas por tiranias. E assim se nega toda a civilização? Pelo amor?

Trecho do conto: (duas mulheres estão fugindo e nisso um espião é contratado para as seguir, porém ao refazer seus caminhos ele se apaixona por uma delas e acaba tendo que mentir para as operações militares em busca de proteção).

segunda-feira

O salto do cisne

Não saberia dizer porque pensei que abandono fosse um nome estrangeiro para o amor. Como se em outra língua as pessoas pudessem trocar uma palavra por outra. Desde quando amor começou a ser um signo manchado de vermelho e carnívoro. Caminhavas pelo silvestre e o salto do cisne branco e o corpo da relva derramavam todos os limites. Queria assim, aprisionar o salto do cisne, seria um prenúncio para aquele antigo saber? Amor chegando, invadindo e se despedindo, o cisne em suas acrobacias.

A Carta (Marina Tzvietáieva)

Assim não se esperam cartas.
Assim se espera - a carta.
Pedaço de papel
Com uma borda
De cola. Dentro - uma palavra
Apenas. Isso é tudo.

Assim não se espera o bem.

Assim se espera - o fim:
Salva de soldados,
No peito -  três quartos
De chumbo. Céu vermelho.
É só. Isso é tudo.

Felicidade? E a idade?

A flor - floriu.
Quadrado do pátio:
Bocas de fuzil.

(Quadrado da carta:

Tinta, tanto!)
Para o sono da morte
Viver é bastante.

Quadrado da carta.


                                                                                                             11 de agosto de 1923


                            * * * 



(Tradução Augusto de Campos)               MARINA TZVIETÁIEVA

quinta-feira

Despedidas



                                                           DESPEDIDAS

ao compor uma viagem de despedida
como ir para longe muito longe numa trilha guiada de sol
 se despedia pelas falas, iniciática previa
o começo de uma conversa, ou um relato de uma estória
ao feitio das fiandeiras em mais outra além
ao ponto que não percebêssemos o fio o traço e a renda
o  remendo de uma e outra adiante.
caminhava muitas trilhas seguidas pela palavra
e  despedia ao pronunciar:
a voz entoava um violino.
despia em pedaços dos passados
árias melancólicas, outros voos dos pássaros.
ouvíamos como quem guarda consigo o mais longe espaço
as casas com suas portas e janelas abertas sem distâncias
onde crianças brincavam com as cordas de carretel
 as linhas eram nuvens e o azul em algum planalto desenhava
 janelas debruçadas com seus amarelismos
personagens de papel sombreados na tarde entrecortada
quando o sol tocando mais perto as pedras do chão
arrastava o destino pela ancestralidade as terras
de uma voz distante qual entoasse ao violino.

quarta-feira

Andar a cavalo para partir



Andar a cavalo é sempre para partir.

Andar a cavalo voa nos cabelos o vento
Voa nos ventos o olhar do horizonte
Onde me acena a tela da infância
Numa árvore fronteiriça até o limite
Onde ainda me reconheço 

No vento ar remoto feito um filamento
Imemorial a esvair-se do chão
Sem as rédeas altissonantes
Do corpo em dois duplos
Se espelhando
Esperando 
Do cavalgar
As toadas partidas

Andar a cavalo destoa o olhar tão derivado
dentro do mar
(não há o mar mas me acostumei a ver
como falta de quem sabe chorasse
não há o mar só a lagoa eu via a lagoa)
contornando chegando e retornando circular
em mim quem sabe inteira
no exato das suas margens
em que esquecem do que fui
na entrega para nascer
em uma árvore.

Deslizava solta pela a ciência dos pássaros sem pouso
A cavalo a liberdade tem nome azul
Asas nos calcanhar
A moldura seja a janela pela qual acenas
A margem da distância
A separação anterior
Entre a vida e o amor

Da perda a secreta pronúncia dos que partem
Para chegar portando as flechas
Lançadas a cavalgar.


*poema com muitos laços soltos iniciado há mais de um ano, modificado mas nunca pronto, nunca entregue assim num dia como esse em que é preciso lapidar o lirismo, em que é preciso cavalgar.

Branco o instante


uma mão se move tocando ao ar a ciência do pássaro sem pouso, o quarto escuro, mas só aquilo que tocas, toma de primeiro um enigma. Pode ainda pertencer ao antes? vê uma mesa posta, coberta por um pano escuro. O oráculo, copos de cristal tingem o obscuro do nome num soletrar lá fora os corpos de ar adivinham palavras nomeiam o amor com sua luz vazia no meio de uma existência.

terça-feira

Galope


    CAROL PEREYR E MÁRCIO PAZIN (Composição Roberval Pereyr)


Onde a luz se fragmenta




Seguiam a mesma direção. Escute: não posso ficar, enquanto segurava uma trouxa de roupas foi se dirigindo pelo corredor, chegando ao fim encontrei portas abertas. Parei, encostei a voz precisava de paciência. Quase largo tudo e saio, mas deixou-me nessa noite entre as coisas, as coisas aflitas fitam-me num giro como se ao redor delas pairasse uma outra existência. Um sopro que com suas ondulações chamasse a mim. Fujo naquela mesma madrugada e saio, continuo ladeira abaixo até o sol encarnar nos olhos. Bambeio dentro do corpo, da outra vez supus a loucura, os medicamentos pesavam e tremia ao sol. Ela dizia venha é quentinho um pouquinho, precisava de mais ciência eu ficava dentro da casa e quase sempre vinha aquela sutil aflição dos objetos em sombra lhe inspirando outra vida, existência leve e superior. Calo o grito em silêncio maior, a ladeira abaixo.
Ousei falar de literatura, desentranhar a poesia num mundo que eu não devia a mínima satisfação, doei-me de corpo a escrita primeiro por prazer agora, por vício não tenho outra solução, não há salvação, nem outro remédio, não falo de psicanálise. O que falo de mim deseja falar em mim, algum desejo que me trai. Meus gestos significam mais a você do que a mim que importa qual direção seguir: cavalo sem rédeas. É nas esquinas onde espero, vontade de te levar nas praças de algum sol de inverno, quando os movimentos aceleram detenho, tenho deixado muita coisa pra trás.
Sabe o passado não esquece, as feridas não cicatrizam e esse salgado forte na sua boca, as lágrimas que escorreram, foi só para você saber que eu não esqueci, e faço como todos não esqueço, atormento, me detenho em pequenas fagulhas e fragmentos seus e você pensa que eu enlouquecia. Não, eu cavo as feridas, as provoco sabe? Você dizia eu sempre destruía as coisas, prefiro assim, mas olhe, preste atenção em mim se você me ouvisse não ficaria assim. Por todos os lados, acima abaixo me procurando, cavo faço a casa na concha me encolho, não sei me defender, deve ser por isso.
O vento na pele parece a sensação mais pura e límpida já não estava por mim quem a seguia, era eu lamentoso e ingênuo. Mas olhe, não enlouqueças, seja firme, qual voz saía lancinante a meus ouvidos, o vento. Não atire esses cacos essa louça de cristal não deixe que a luz desse sol se fragmente em nenhum ponto disperso, segue-a. mas ela contínua numa eternidade me invadindo todos os poros, entregando o corpo caminhante e febril. O olhar longe, estar onde, espairecia em fugas silenciosas quando nada detém, nada segura desse tecido da vida. Eram suas as horas? Havia luz que te acompanhasse? De mais ninguém, mas o que poderia a acompanhar, o tempo o trauma? -  horas que corriam imensa intensas, adivinhava o céu.
“Não, eu ainda não abandonei essa casa”. Volto, violentava o passado não por uma história mas por uma mulher, era inteiro em erosão em fragmentos largados, restos e réstias. A imagem rebrilhava o espelho, olhava em meus olhos e suspeitava a partida. Álbuns de fotografia, alguém a me chamar no quintal de antigamente, são difusas as vozes. Não, eu nego a casa e vou por essas trilhas, uma canta e carrega o condão da eternidade, outra repete e age, outra dança na chuva. Nessa confio ainda que com aflição cega, aflição de entrega, meu ser inteiro nas primaveras de algum cheiro de maracujá, rosas nos cabelos de maio, junhos pelo rosto a tristeza enrugada nos cobertores da espera. O que entregar quando vierem me buscar? Meu lar paira uma poeira, tudo rebrilha e as coisa parecem tão quietas, mas se movem tudo parece possui uma estranha delicadeza, tão frágeis quando o sol toca, tão silencioso quanto, quando posso me possuir nesses passos que. Deixo a sala, abro as portas, deixo a rua ladeira abaixo avisto o sem fim estou sem mim. Pelo menos, voltamos a seguir a mesma direção. 



pequeno trecho de um conto que apareceu em papéis avulsos, soltos na gaveta.

segunda-feira

Uma espécie de perda

Usávamos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados, gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos. E estendemos sempre a mão.

Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,

( - o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.

De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha sua cor mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.

Não te perdi a ti,
perdi o mundo.                 
                                                                            Ingeborg Bachmann 
                                                                            


INGEBORG BACHMANN





Imagem: François-Henri Galland

sábado

A palavra de hoje é naufrágio


Deixar viver é tão mais leve perdoar com a certeza de cada manhã seu pensamento alvorecer
dançar a música do vento ao meu redor sem descrever apenas a poética do instante solta
arquetípica mitológica num calcanhar alado: tua prisão ressurge das águas caudalosas?  
desenho sonhos em águas circulares só quero a caravana das sereias
a armadilha das vozes antigas, no exato momento que o tempo ressurge,
para reconhecer a palavra de um naufrágio
costurando nas veias um tecido turquesa
para cismar que o dia foi feito só para isso.

quinta-feira

O velho Conselheiro - Machado de Assis


                                                                          

Qual! Não posso interromper o Memorial; aqui me tenho outra vez com a pena na mão. Em verdade, dá certo gosto deitar ao papel cousas que querem sair da cabeça, por via da memória ou da reflexão. Venhamos novamente à notação dos dias.
Desta vez o que me põe a pena na mão é a sombra da sombra de uma lágrima...
Creio tê-la visto anteontem na pálpebra de Fidélia, referindo-me eu à dissidência do pai e do marido. Não quisera agora lembrar-me dela, nem tê-la visto ou sequer suspeitado. Não gosto de lágrimas, ainda em olhos de mulheres, sejam ou não bonitas; são confissões de fraqueza, e eu nasci com tédio aos fracos. Ao cabo, as mulheres são menos fracas que os homens, - ou mais pacientes, mais capazes de sofrer a dor e a adversidade... Aí está; tinha resolvido não escrever mais, e lá vai uma página com a sombra da sombra de um assunto.
Também, se foi verdadeiramente lágrima, foi tão passageira que, quando dei por ela, já não existia. Tudo é fugaz neste mundo. Se eu não tivesse os olhos adoentados dava-me a compor outro Ecclesiastes, à modernam posto nada deva haver moderno depois daquele livro. Já dizia ele que nada era novo debaixo do sol, e se o não era então, não o foi nem será nunca mais. Tudo é assim contraditório e vago também.


Memorial de Aires . Machado de Assis

eclesiastes: "o que foi é o que há de ser; e o que se fez isso se fará: de modo que nada há de novo debaixo do sol".

sexta-feira

Alma brasileira





ODE A UMA MANHÃ NO BRASIL

"Esta é uma manhã
do Brasil. Vivo dentro
de um violento diamante,
toda a transparência
da terra
se materializou
sobre
minha fronte,
move-se apenas
a perfeita verdura,
o rumoroso cinturão
da selva:
vasta é a claridade, como uma nave
do céu, vitoriosa."

Pablo Neruda (Navegações e Regressos) 

sábado

Escuto ao guiar o rio



Escuto ao guiar o rio,
Margem a margem, a altura da distância desses lados
Fico de um incomunicável a procura da fonte
Noutro a procura dos mesmos sinais
Mas sinais ou silhuetas que não se revestem sobre
A forma de meu mal, afinal são metades vindas
De onde? Metades que entrego sobre a fronte clara.

Escuto ao guiar o rio
A matéria fina das águas
Malhas fluídas furam
E ferem de ardor
Esta língua cascata.

Entre a terceira
Renasce clara a mulher solar
Dos pássaros. Renasce-a
Sendo quem em mim
Sonda do som
Marítimo porque deságua desfaz. 



Poesia inédita Carol De Bonis.






Poesia de sábado [Rosa Alice Branco]

A mãe escavada nos dedos

Coração escavado na rocha,
um buraco onde as crianças se agarram
enquanto alguém soletra o teu nome
na maré que sobe
e vozes miúdas chamam pela mãe.
Depois é preciso esculpir uma rocha
em forma de coração
de plástico de cinza de carvão
porque a pedra dói nos dedos ao entardecer
quando se vão as últimas palavras
e não há ninguém para enganarmos,
para nos podermos enganar
quanto à matéria de que é feito o coração.
As rochas ao longe são todas iguais
e o meu corpo submerso
nunca sentiu o ofegar das pedras
quando o mar as deixa.
Vê, aqui é o lugar do coração.
Quanto custa trazeres-me à superfície,
abrir os dedos e sentir pulsar neles
o nome da mãe que soletramos
sempre que nos chamamos um ao outro
quando a maré baixa e revela o buraco
de que é feito o coração?

Os cheiros de Maio

Também a casa. O que resta dela
é o mapa onde percorro
os caminhos que tracei ao longo dos anos.
É fácil perder-me, o papel desfaz-se
quando rego a planta da casa,
o verde com que saio das trevas
e me orienta o atlas
onde te respiro a presença.
És mais tu do que antes
quando o teu riso dançava na casa,
uma casa que girava sobre os calcanhares
do mundo
e eu era a cintura da ampulheta
por onde passa o tempo.
Agora estou de cabeça para baixo
e tu sobes por mim
até aos olhos com que me vejo correr
para o teu colo
na casa que guarda os aromas
com que amassas o milagre da presença.


                                                       Rosa Alice Branco (Soletrar o dia)

segunda-feira

Coração de vinil



MEU CORAÇÃO ACELERADO
ACORDADO NOS ACORDES
DESSA TRAMA SOLUÇA
O QUE SEM SOLUÇÃO
REFAZ NA TRAMA              (NA CAMA)
O DESENGANO
NÃO SE ENGANA
AO QUE VEIO: AMAR.


tocou num átomo
cinzel de estrelas sugando
o universo adentro:
ela se deixou levar.




domingo

Do calendário lunar


À TS do jeito que me contou.

Após terminar o calendário de seis noites e cinco dias, uma para a madrugada da lua das mulheres que entornavam madrigais, ele diz, aqui entre nós permanece o enigma. Os olhos das mulheres eram esfinges, armavam-se as fugas e todos perceberam que é o silêncio que recobre certas coisas. O rei abriu o silencio com os dedos dentro dele viviam sete mulheres em nomadismo elas traçavam fronteiras na areia e logo que se cansavam de uma terra desenhavam outras. Dentro da esfinge repousava o segredo de uma madrugada a mais, desde que o rei fora obrigado a igualar os dias do ciclo lunar com o calendário real houve uma descomunhão entre os seres todos da cidade que pareciam que circulavam entre a fissura do real e irreal, erguiam-se muralhas, travavam batalhas, espadas derramavam sangue.

O tempo entornava dentro do tempo, todas as palavras derivavam da ciência de Ollan*, quando o estudo da ciência da letra se dava durante doze anos. O rei chamou Walugui e disse-lhe que escrevesse a história dos dias. Walugui que era um sábio e louco ao mesmo tempo sofreria grande provas se não fosse capaz de escrever, mas para aprender a escrita deveria se submeter a Ollan estudando mitologia e memorizando as trezentas e sessenta das histórias que correspondiam ao calendário lunar. Walugui não acreditava ser capaz porque não acreditava na memória acreditava sim na paixão, passou a circular noite e dia pelos arredores do castelo observando a natureza o sol e as noites estreladas. Chegou o dia e a única coisa que ele sabia dos olhos da esfinge era o seu decifra-me ou devoro-te. Decifrar era aprender uma outra língua e não aquela dos sábios gregos e troianos que seu povo falava quando evocava as guerras e o sangue derramado. Negaria os vikings e todas as batalhas. A beleza não se via, os homens nasceram proibidos de ver a beleza, os poetas apenas nomeavam.

- Aproxime-se Walugui e diga – disse o rei poupando-se dos longos discursos da realeza.

- Fechar os olhos é uma forma de traição. De tanto olhar comecei a falar palavras que de começo não entendia. Palavras do delírio. Nós homens somos observadores dos céus, não há método para dizer que existe uma madrugada a mais no calendário, nem que há um descompasso entre o calendário lunar e o calendário real, o que há é a guerra desse fino tecido de homens que acreditam em lucidez e paixão. Navegar é preciso por muitos mares...

Um longo silêncio,

- Como percebi essas longas noites as estrelas voltaram ao lugar normal, de onde, elas nunca deveriam ter saído. A madrugada a mais é desejo dos homens, é velamento ela não se deixa capturar em seu mistério. Alguma coisa a revela, mas é feitiçaria.

O rei ordenou que prendessem Walugui, disse que ele descumpria a lei de Ollan a mais alta sabedoria e inventava fábulas sem destinação. Disse também que procurassem a mulher com que Walugui tivera aquela conversa, encontraram-a vagando pelo deserto ela falou, no que consta na história, que aconselhou Walugui a ficar em silêncio. A beleza não é dada aos homens a ser vista nem tão pouco dita.




*ler Borges; cinema.