quarta-feira

Marguerite Duras

As mãos negativas
Chamam-se “mãos negativas” as pinturas de mãos encontradas nas grutas magdalenienses da Europa Sul-Atlântica. O contorno dessas mãos – espalmadas sobre a pedra – era recoberto de cor. O mais frequente de azul, de preto. Às vezes, de vermelho. Nenhuma explicação foi encontrada para esta prática
(...)


 

domingo

As cidades que em mim somente passam


Lisboa tem gosto de mar
Teu canto sorve o rio
E deságua latente
Rosas na voz.
Acordo com a pele
Acenando sal como se fossem
Os sais coagulados de um adeus
Aprumo os lençóis nas manhãs
Para ser outra. Partida como se
Chegasse em cada palavra sonora
Ao que escutasse uma comitiva
De desterro e exílio
Lugar algum.




Pelo vale industrial







Guardo fretas na memória

Foi o som das colheitas como que inventassem acordes
O que novamente nos acordou. Em frestas
De um corpo a caminhar em silêncio pelo outro lado,
Foi o som o que nos acordou, outra vez dos passos
Pelo vale industrial desabitado. Num imenso eco da vida profunda
Víamos multidões onde não as havia, apenas rumores de bossa
Bolhas de esgoto industrial, rio morto, boi morto
A verdade sobre a verdade de um inseto que pousa
À sombra da gaivota que num lampejo desaparece.
Nesses dias os sons eram mais altos que a ilusão
Noutros, tinham a voz, como que pudesse alcançar um Deus
E libertá-lo dos esgoto feito de ferrugens, para que dentro dos acordes
Outros rangessem ruídos de inventar semeaduras. 

                                             * * *


Depois

Depois do instante que se queria eterno
Depois que a falta ganhou seu aprumo de definição
Sonhar que ela seja um sopro
Que do coração solta a palavra
E a cima dela um tronco de ar
Destilado desafinada
Canção para depois
Daquilo que se quis eterno
Seja um instante para sempre
Na memória, o rio que corre sempre
Pelo contingente em veredas
É o possível do infinito laço
Da ponte do além. 



sexta-feira

Silêncio fabular

Antes de haver conspirações ao tempo
Cantos veneráveis pousavam
Em teu abstrato e na vida,
Onde tudo fosse relativo,
Os segredos encolhiam-se aos pés nas areias
- o mar inteiro dentro da voz - Se venho,
De uma espécie terrestre, é por conhecer a terra
Se me confundo com as ostras é
Por guardar demasias de sentimentos
Mudos e silêncios. Uma longa
História de furtos a montanha
De pirâmides, um deserto, solos
E sei que você se abre como um vulcão
E que a minha tristeza pode ser
Neve e ao fechar os olhos
Não veja mais a árvore frondosa
Origem de seivas e hoje, ausentada
Mineral, a mais inocente das flores,
Da presença do mundo
Da crueldade dos seres
Microscópicos vivendo em bando
No silêncio das areias
Por osmose minha pele na tua
Como minha mão na tua ou todas
As palavras pronunciadas e também
As não pronunciadas que habitam 
O buraco da garganta outras os gestos e outras
Ainda os olhares. Viver pode ser isso
Uma espécie de
Existência contra
As inquietações
Orientar a linha
Até que os bichos de ergam e saiam
Calmamente do casulo:
Uma explosão
Antes o tempo cíclico
Bem vivesse dentro do sol
A gôndola da brisa fosse
Imensa a desfazer o instante
Iniciático ato de vida.
Seus moinhos de vento a respirar
Como se a vida mesma
Se surpreendesse em sua mesma
Existência de viver 
Atravessada a infância com os pés
No chão barro vermelho
Por esse caminho, que não leva a lugar
Não tivesse compasso para medir
Um quadrado que coubesse
Na lua, só depois eu inteira desaparecendo
no tempo, em neblina branca. 
E quem sóis?  
Foi o tempo
O vento o cisne dos olhos minerais
Só sei que se me
Perguntasse sobre o amor
Teria respostas, mas talvez não
Soubesse mais o que fazer com elas.
Porque as conspirações
São sempre silenciosas
E se te roubaram o tempo
É por que jamais ele
Houvesse lhe pertencido
Ou por que se não sabes
O caminho sou eu que refaço
Sempre o mesmo laço
Com a proa apoiada na amurada
Para trás 
 despedidas a terra
Sendo aquática 
 gira a manivela
Para falar, desta vez, de humanidade. 


quinta-feira

Antes das conspirações do tempo


Antes de haver as conspirações com o tempo
Havia cantos veneráveis para
Em teu abstrato pousarmos a vida
Onde tudo fosse relativo
Os segredos encolhiam-se nas areias
- o mar inteiro dentro da voz - Se venho,
De uma espécie terrestre, é por conhecer o som 
da terra. Se me confundo com as ostras é
Por guardar demasias de sentimentos
Mudos e silêncios. Uma longa
História de furtos a montanha
De pirâmides e um deserto
E sei que você será como um vulcão
E que a minha tristeza pode ser
Neve e ao fechar os olhos
Não veja mais a árvore frondosa
Origem de seivas e hoje, ausentada
Mineral, a mais inocente das flores,
Da presença do mundo
Da crueldade dos seres
Microscópicos vivendo em bando.
Por osmose minha pele na tua
Como minha mão na tua ou todas
As palavras pronunciadas e também
As não pronunciadas que habitam 
A garganta outras os gestos e outras
Ainda os olhares. Viver pode ser isso:
Uma espécie de existência contra
As inquietações
Das manhãs quando os bichos de erguem
Calmamente do casulo.
Uma explosão
Antes o tempo cíclico
Bem vivesse dentro do sol
A gôndola da brisa fosse
Imensa a desfazer o instante
Iniciático ato de vida.
Seus moinhos de vento a respirar
Como se a vida mesma
Se surpreendesse em sua mesma
Existência de viver 
Atravessada a infância com os pés
No chão barro vermelho
Por esse caminho
Não tivesse compasso para medir
Um quadrado que coubesse
Na lua, só depois eu inteira desaparecendo
no tempo. E quem sóis?  

Foi o tempo
O vento o cisne dos olhos
Só sei que se me
Perguntasse sobre o amor
Teria respostas, mas talvez não
Soubesse mais o que fazer com elas.
Porque as conspirações
São sempre silenciosas
E se te roubaram o tempo
É por que jamais ele
Houvesse lhe pertencido
Ou por que se não sabes
O caminho sou eu que refaço
Sempre o mesmo laço
Com a proa apoiada na amurada
Para trás  despedidas a terra
Sendo aquática  gira a manivela
Para falar, desta vez, de humanidade. 









  

sábado

Os vestígios


Não fui senão aquela quem procurou dentro de ti
Os vestígios ao intangível, pela doação
De um peito. Coração aberto,
Cicatriza.

Uma rocha de minérios e calcários fostes
Fossem as begônias e um verão,
Cigarros, um sofá, um filme sem legendas,
Enquanto esfumaça e confesso a história
Outra vez, a fábula enterrada no silêncio
Uma vez, todo ouro retirado, em cetim
E o linho branco dos impérios.   

Teríamos radiantes as almas de um destino
Se ao atirassem em precipícios amores
Vidas em abismos, salvos seriam
Por suas dores em cantos.

Seria uma obsessão espraiada
Pelas peças de uma engrenagem
Que faça rodas da dor
Que faça curvas e peripécias com o destino
Para aguardarem as violetas
E as rosas ainda por desabrochar?

O corte brilhante daquele sangue espesso
Cicatrizei com as nadadeiras de um mar profundo.
Quantas profundezas a sondar os mistérios
E os minérios do pensamento?


 

terça-feira

A origem ágrafa



 





      
A origem ágrafa

 

Desterrar a origem ágrafa
A ecoar dentro do berço
De teu nascimento, como em renúncia
Curva-te a rasgarmos
Fluída cada sílaba do mar
Invadindo as formas finas
De caligrafias.
Depois, navegamos
Nesses feixes onde o tempo
Divide e corta
A tarde daqui a entrada
Da primitiva casa
As casas, dentro delas,
Um corpo que ainda fala.
O silêncio das sereias
Seria anterior ao traço da paisagem
Interna? A ausência de som,
As casas, dentro delas,
Um corpo que ainda fala:
Cada sílaba invadida de água
Cada passo submerso sem direção
Ainda que fragmentária
Desfaz-se o som com que ocuparia
Meu coração. Sons do passado,
Nossos e ao redor.
Mas à entrada da primitiva casa
Cada passo, cada pássaro,
Derrama a ampulheta ao tempo:
Chega a hora de nos tornarmos eternos
Como se fosse estranho envelhecermos
Enquanto estou só, as casas possuem
Um exílio anterior.
Enquanto da janela
Acompanho-me de um quadro antigo
Desviado do alvo do tempo
No fundo há uma lágrima, mas se
Aproximas a vê-la dentro, é a criança,
A infância do menino que segue
Caminhando a história para trás.
Caminho de costas quando
Os desenhos contornam minhas bordas.
Os pássaros regressam. Anoitece,
Sobre os lírios de um céu
Apaga o sol outra estação
Nas primaveras noturnas das florestas
As plantas de outra sexualidade
Adormecem qualquer estação de origem
E em tempo (invisíveis)
Suas raízes crescem aos céus.

 

 
        
            
 



 

sábado

Ao destino em que desenhas no ar

Entre duas portas abertas
tua memória avança pela esquerda
noutra fazes caminhá-la para trás.
É cíclico o caminho. Num, mímicos de ensaios leves
noutro, todos de vermelho vendem ingressos da dor.
E pensastes, seria fácil o caminho?

As gavetas antigas suportam os esquecimentos dos homens
as feridas de quando dilacerastes um espelho ainda cicatrizam .
O mundo é um ensaio branco e suas mãos
dançam fantoches de fantásticos contos.
Queríamos desejar a felicidade, mas ficaram as feridas.

Um satélite toca do céu a lua,
um corpo de amor brilha por dentro da vértebra
avessa dessa vértebra, chegas ao destino
em que desenhas circular:  o amor é sempre o amor
com suas saídas nos amamos no ar. 



Onde renasce o silêncio




Hoje o mundo veio a forma de dois campos
De colheitas. Num vesti a roupa dos trigais
Noutro, os pássaros fizeram do corpo morada.
Seria essa a biografia conjugada
Aos vegetais, um corpo erguido ao ar
Migratório das cercanias do coração.
Para o dia que nasce, para a folha que morre
Veio até mim a claridade,
Sinal áureo que renasce
Acima de mim e dentro
A puxar o condão do mundo
Da vida tornada planta ou raiz numa perda
Verdejante quando palpável ao olhar.
A espera perde-se incomunicável
Para vê-la renascer num silêncio. 








domingo

As origens minerais das pedras

Sempre difícil ter em mãos um ponto
Nem que seja apenas um ponto de vista
Uma nódoa espelhada por todos os ângulos
O princípio de se nomear desfaz
O segredo pelo lado lunar.
Um ponto prata no céu desfolha o dia
Falarei pelo outro lado
Sobrepondo meu ser as origens minerais das pedras
Que adormecem os sons, os sonhos, as selvas
E os gestos antes recolhidos, mas há
Tempos de colheitas, de migrar
Das casas ao antigo. 





Manoel de Barros





segunda-feira

Contornar o fino fio


Não sou o que digo
Mas é como se fosse
Digo gaivotas asas feridas
Em queda dentro de duas brancas
Pupilas ao vento. Elas voam.
Num ato de deslocamentos
Entre o instante e o antigo
Entre a terra e o céu
Como se dizer estivesse fora do que eu digo
Como se quando eu falasse
Algum recorte de mim
Fosse um fio sobreposto de imagens
E fosse esse céu
Onde avisto gaivotas
Regressando dentro da língua
Essa espécie de duplicidade
Presentes em duas asas abertas
Presentes ao dizer assim contornar
As sílabas pelo fino fio
Será um jogo de alegrias
Seria jogo de tristezas
Ou um jogo de alma e corpo
Prévia anunciação
A algum recorte que fita
Dentro desse meu olhar, teu olhar?

domingo

Entre som e o silêncio




Tu vinhas sem um nome e fizestes
Da fábula um berço
Caminho, entre o som e o silêncio.
Vinhas sem nome de um alfabeto ágrafo
Suspenso em um invólucro de nuvens.

Quando fizestes do corpo a nudez
Negastes a luz para fechar os olhos
E ver como as nuvens ficam nuas
Magenta, madureza, música de pisares

O céu. Mas ao vê-la, luz interior,
            Tudo isso sabia de cor

            Como em ti a entrega de um corpo.

sábado

Na escuta de outros rumores




(o que se faz escuta de outros rumores
se inventa nos sonhos mais antigos).


Ao segurar uma lupa confere
Entre sombras essa matéria
De efêmero.

Aproximas aos sinais da terra
O nome a qualquer profecia
De futuro.

Poderíamos nos agarrar em raios de sol
Vestidos de capas azuis celestes
A estampar em avenidas
Os sons desgarrados

Entre o saber e o medo, uma saída
Aos abandonados
Aos que silenciam no olhar

O que percebe que entre a relva
Adormecem os sons os sonhos
As selvas e os gestos recolhidos
Por qualquer estação da existência.

Alguém ao longe ecoasse: fosse
Em tempo de colheitas
As semeaduras do estágio
Anterior a fragilidade.

Mas o futuro em flauta
Ascende na andança
Trajado de árabe mouro
Galopando mui eloquente
Desfiando em punho
A espada do destino a lança
Sobre o gesto e dança
O sinal da linguagem
Em consciência onde a palavra
Toma forma e desfaz
Da matéria iniciática
O seu percurso de borboleta
Negra metamorfoseada
Em asas andaluz refletidas
Em azuis, em dois olhos

A aprender a ciência secreta
A sombria névoa dos animais
Desgarrados do bando
Sozinhos, nômades, ao sol. 






O mar inteiro dentro da voz soletra sóis e chora quando se derrama em cântaros

segunda-feira

Anoto em caligrafias brancas


Anoto em caligrafias brancas
Um pedaço de vida rasurado
Como seria vida
A lida que aquece a linha
Sem esse laço perdido?
O sol nos amarra em um raio
Para o mundo afogar
E dentro da ciência do amor
Revivemos essa tarde de abril
Com nome de despedaço
Eu que lhe darei devaneios
Para a sintaxe do corpo
Condensar o real em memória
Quando os ruídos das pedras
Secarem o nome debaixo de lágrimas. 

sexta-feira

As declinações das rochas



Deságua ao divã
esta estranha mania
de desabitar as mortes
nesta manhã, as linhas de luz
ardem as ramas de um coração
anões enterram crianças
que choram aos peixes
de um mar radioativo
gaivotas recolhem voos
em asas uterinas
um silêncio declina as certidões
quando ainda não
nascemos para o mundo.


Poesia inédita Carol De Bonis