quarta-feira

Entre duas escolhas um ponto de equilíbrio


Entre duas escolhas o ponto do equilíbrio, entre a manhã e a madrugada o destino na ponta dos dedos da mulher que sela as cartas com a saliva, da mulher que se esquece de entregá-las porque não há compromisso para o amor porque o amor é a outra metade, a alma dos homens que fazem a revolução e saem para as ruas, hoje esse canto ensurdece, o canto das sereias, o canto de um adeus para um futuro que ainda não nasceu.  Ando saudosista como se a saudade fosse uma maneira para se esquecer de tudo. Esquecer que há um compromisso e seguir a maestria dos antigos em perdê-lo. Dos antigos sábios que ainda erram quaisquer pelas ruas, do cronista que entende a beleza em qualquer perdida multidão.

Eis quando a alma se perde do corpo e eu sinto saudade em esquecer-me.







segunda-feira

Os sete cercos

Os sete cercos

um: diria os nômades dessa superfície de musgos que desintregam seu olhar. dois: traria uma porção mágica para abrir os sete cercos. três: saberia dos jardins de Versalhes que não foram plantados com as mais belas flores de toda Paris. quatro: uma mulher na conquista dos espasmos dessas cores. cinco: jardim multicolor tinge de branco e vermelho o leite de seus seios. seis: roma romã o silêncio no deserto de duas lobas. sete: ama do silêncio a língua que se inventa ao ouvir prisioneira dos sete cercos.

hino dos homens por amor a guerra

desterro-exílio nos cercos do coração
de nunca essa terra de nômades pertenceu
a solidão, somos civilização de corpo-cicatriz.

ciranda

esse núcleo muito aberto derrama ao desejo
e prenuncia sua pura distância
em novas maneiras do devir
no instante em seguir
ou ficar em voltas
com as redomas
de um coração.

sábado

Átimos de luz



As dores metálicas estão sempre fora mim
Sitiadas as almas se encontram num átimo de luz
E alumiam, mas meu coração sente em metal
A prata do alumínio transplantar meus sentimentos.
Para onde? Para a aura de um anjo torto, se
For ele a mim que me olha sendo-o
Para a usina para a antena para o fundo do mar
Para as correntes elétricas que tocam uma alma

A outra de maneira sobrenatural. 

Poesia inédita

quinta-feira

Aquele grande rio Eufrates - Ruy Belo


Perigo de Vida

É grande o risco da palavra no tempo
maior mesmo talvez que no mar
Eu fui à margem do dia despedir um amigo
e não houve no cais
iniciativa verbal que edificasse
uma só tenda para o nosso coração
Éramos peregrinos
O que deixam a saudade de turistas
ausentes na rua de outono
Morríamos contra a curva dos dias
a morte rotativa e provisória

Tivesse a própria palavra lábios
e nenhum clima poderia
arrefecer-lhe o coração
Tivesse ela lábios e não seria
tão grave o risco no tempo e no mar. 

Ruy Belo


Certa conditio moriendi

Os poetas todos fitaram a morte
e reuniram-se depois numa assembleia de riso
para esquecer quem eram
Mas era a morte a única saída. 


Vita mutatur

Nunca até hoje eu morrera tanto em alguém
Caíste mais na minha orla
do que a nespereira do quintal
Não secou para mim assim o paul de malmequeres
onde os ralos iam repetir as noites
e os abibes vinham de estações no bico
O mesmo céu que tu me desdobraste sobre a infância
acaba de depor na tua fronte
o excessivo peso de uma estrela
Com a tua partida a minha história começa
a escrever-se para além da curva
onde à tarde rompia a camioneta das cinco:
nenhum outro veículo vinha
tão cheio de longe e de tempo
A natureza entrava pela noite dentro precedida
no pátio pelos véus da sombra

Agora as tuas pálpebras desceram
Não mais o teu olhar te defende
Tu és um ser exposto a todos os olhares
esgotado resumido e sem mistério
Deixaste abertas todas as gavetas
desordenada a secretária
Já a tua presença não reúne
as linhas divididas desse rosto
que essas humildes coisas tinham
para ti nem a tua sombra cobre
domésticos e ínfimos segredos
Tens finalmente aquele metro e oitenta
a que te circunscreviam civilmente
é essa até a tua última
dimensão conhecida

Levarei mais longe a tua vida e cobrirei
da tua morte um pouco mais de terra
Haja sempre novos olhos
abertos no muro do tempo
e braços que transmitam o sol
à volta da terra para lá do mar
Já as primeiras chuvas perseguem
os passos que cumpriste na praia
Tudo nessa posição te dispõe
para o dia da grande aceitação
Estende-se sobre ti na sua superfície de mar
o grande olhar de deus. 

Ruy Belo (1933 - 1978); Aquele grande rio Eufrates. 




terça-feira

Arrasta o condão de abertura


entre as duas portas abertas você erra caminhando para trás
sabendo dos mímicos apalpa bem de leve o branco num equilíbrio
fino e uma mão se move tocando ao ar a ciência do pássaro sem pouso
o quarto escuro mas só aquilo que tocas entre o esquerdo
do nome é o AMOR que arrasta o cordão de abertura
toma do primeiro um ENIGMA pode ainda pertencer ao antes
distraidamente vê uma mesa posta coberta de preto
alguém chama teu nome num tilintar
copos de cristal tingem o obscuro do nome
soletrar é só uma escolha envolvida
nos passos a desdizer qualquer vestígio da família
fosse um só traço que riscou na madeira
e pareceu o desenho de um pássaro
de pedra seu coração não é mais o mesmo
nos dias frios a chuva inundando os pântanos
medievais (sempre habitara) o vento alastra num clarão
DERRAMANDO entre os ciprestes a camisa de seu pai
avisa vou voltar sem saberem eu ainda não morri
o espelho margeia um rosto pode ser o seu e do seu filho
juntos refletem o silêncio do depois e quando os olhos estiverem partido
pode ser que de qualquer intenção não reste o meio fio das coisas
essa luz toda escorrendo seja nenhuma brecha
porque entre duas portas abertas você erra caminhando para trás


depois recolhe os restos do circular e desdiz
o amor com suas dobras e triângulos
desenha a geometria com que nos amamos no ar.