sexta-feira
quinta-feira
O velho Conselheiro - Machado de Assis
Qual!
Não posso interromper o Memorial;
aqui me tenho outra vez com a pena na mão. Em verdade, dá certo gosto deitar ao
papel cousas que querem sair da cabeça, por via da memória ou da reflexão. Venhamos
novamente à notação dos dias.
Desta
vez o que me põe a pena na mão é a sombra da sombra de uma lágrima...
Creio
tê-la visto anteontem na pálpebra de Fidélia, referindo-me eu à dissidência do
pai e do marido. Não quisera agora lembrar-me dela, nem tê-la visto ou sequer
suspeitado. Não gosto de lágrimas, ainda em olhos de mulheres, sejam ou não
bonitas; são confissões de fraqueza, e eu nasci com tédio aos fracos. Ao cabo,
as mulheres são menos fracas que os homens, - ou mais pacientes, mais capazes
de sofrer a dor e a adversidade... Aí está; tinha resolvido não escrever mais,
e lá vai uma página com a sombra da sombra de um assunto.
Também,
se foi verdadeiramente lágrima, foi tão passageira que, quando dei por ela, já
não existia. Tudo é fugaz neste mundo. Se eu não tivesse os olhos adoentados
dava-me a compor outro Ecclesiastes, à modernam posto nada deva haver moderno
depois daquele livro. Já dizia ele que nada era novo debaixo do sol, e se o não
era então, não o foi nem será nunca mais. Tudo é assim contraditório e vago
também.
Memorial de Aires . Machado de Assis
eclesiastes: "o que foi é o que há de ser; e o que se fez isso se fará: de modo que nada há de novo debaixo do sol".
sexta-feira
Alma brasileira
ODE A UMA MANHÃ NO BRASIL
"Esta é uma manhã
do Brasil. Vivo dentro
de um violento diamante,
toda a transparência
da terra
se materializou
sobre
minha fronte,
move-se apenas
a perfeita verdura,
o rumoroso cinturão
da selva:
vasta é a claridade, como uma nave
do céu, vitoriosa."
Pablo Neruda (Navegações e Regressos)
sábado
Escuto ao guiar o rio
Escuto ao guiar o rio,
Margem a margem, a altura da distância desses
lados
Fico de um incomunicável a procura da fonte
Noutro a procura dos mesmos sinais
Mas sinais ou silhuetas que não se revestem
sobre
A forma de meu mal, afinal são metades vindas
De onde? Metades que entrego sobre a fronte
clara.
Escuto ao guiar o
rio
A matéria fina das
águas
Malhas fluídas
furam
E ferem de ardor
Esta língua
cascata.
Entre a terceira
Renasce clara a
mulher solar
Dos pássaros. Renasce-a
Sendo quem em mim
Sonda do som
Marítimo porque
deságua desfaz.
Poesia inédita Carol De Bonis.
Poesia de sábado [Rosa Alice Branco]
A mãe escavada nos dedos
Coração escavado na rocha,
um buraco onde as crianças se agarram
enquanto alguém soletra o teu nome
na maré que sobe
e vozes miúdas chamam pela mãe.
Depois é preciso esculpir uma rocha
em forma de coração
de plástico de cinza de carvão
porque a pedra dói nos dedos ao entardecer
quando se vão as últimas palavras
e não há ninguém para enganarmos,
para nos podermos enganar
quanto à matéria de que é feito o coração.
As rochas ao longe são todas iguais
e o meu corpo submerso
nunca sentiu o ofegar das pedras
quando o mar as deixa.
Vê, aqui é o lugar do coração.
Quanto custa trazeres-me à superfície,
abrir os dedos e sentir pulsar neles
o nome da mãe que soletramos
sempre que nos chamamos um ao outro
quando a maré baixa e revela o buraco
de que é feito o coração?
Os cheiros de Maio
Também a casa. O que resta dela
é o mapa onde percorro
os caminhos que tracei ao longo dos anos.
É fácil perder-me, o papel desfaz-se
quando rego a planta da casa,
o verde com que saio das trevas
e me orienta o atlas
onde te respiro a presença.
És mais tu do que antes
quando o teu riso dançava na casa,
uma casa que girava sobre os calcanhares
do mundo
e eu era a cintura da ampulheta
por onde passa o tempo.
Agora estou de cabeça para baixo
e tu sobes por mim
até aos olhos com que me vejo correr
para o teu colo
na casa que guarda os aromas
com que amassas o milagre da presença.
Rosa Alice Branco (Soletrar o dia)
Coração escavado na rocha,
um buraco onde as crianças se agarram
enquanto alguém soletra o teu nome
na maré que sobe
e vozes miúdas chamam pela mãe.
Depois é preciso esculpir uma rocha
em forma de coração
de plástico de cinza de carvão
porque a pedra dói nos dedos ao entardecer
quando se vão as últimas palavras
e não há ninguém para enganarmos,
para nos podermos enganar
quanto à matéria de que é feito o coração.
As rochas ao longe são todas iguais
e o meu corpo submerso
nunca sentiu o ofegar das pedras
quando o mar as deixa.
Vê, aqui é o lugar do coração.
Quanto custa trazeres-me à superfície,
abrir os dedos e sentir pulsar neles
o nome da mãe que soletramos
sempre que nos chamamos um ao outro
quando a maré baixa e revela o buraco
de que é feito o coração?
Os cheiros de Maio
Também a casa. O que resta dela
é o mapa onde percorro
os caminhos que tracei ao longo dos anos.
É fácil perder-me, o papel desfaz-se
quando rego a planta da casa,
o verde com que saio das trevas
e me orienta o atlas
onde te respiro a presença.
És mais tu do que antes
quando o teu riso dançava na casa,
uma casa que girava sobre os calcanhares
do mundo
e eu era a cintura da ampulheta
por onde passa o tempo.
Agora estou de cabeça para baixo
e tu sobes por mim
até aos olhos com que me vejo correr
para o teu colo
na casa que guarda os aromas
com que amassas o milagre da presença.
Rosa Alice Branco (Soletrar o dia)
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