domingo

As origens minerais das pedras

Sempre difícil ter em mãos um ponto
Nem que seja apenas um ponto de vista
Uma nódoa espelhada por todos os ângulos
O princípio de se nomear desfaz
O segredo pelo lado lunar.
Um ponto prata no céu desfolha o dia
Falarei pelo outro lado
Sobrepondo meu ser as origens minerais das pedras
Que adormecem os sons, os sonhos, as selvas
E os gestos antes recolhidos, mas há
Tempos de colheitas, de migrar
Das casas ao antigo. 





Manoel de Barros





segunda-feira

Contornar o fino fio


Não sou o que digo
Mas é como se fosse
Digo gaivotas asas feridas
Em queda dentro de duas brancas
Pupilas ao vento. Elas voam.
Num ato de deslocamentos
Entre o instante e o antigo
Entre a terra e o céu
Como se dizer estivesse fora do que eu digo
Como se quando eu falasse
Algum recorte de mim
Fosse um fio sobreposto de imagens
E fosse esse céu
Onde avisto gaivotas
Regressando dentro da língua
Essa espécie de duplicidade
Presentes em duas asas abertas
Presentes ao dizer assim contornar
As sílabas pelo fino fio
Será um jogo de alegrias
Seria jogo de tristezas
Ou um jogo de alma e corpo
Prévia anunciação
A algum recorte que fita
Dentro desse meu olhar, teu olhar?

domingo

Entre som e o silêncio




Tu vinhas sem um nome e fizestes
Da fábula um berço
Caminho, entre o som e o silêncio.
Vinhas sem nome de um alfabeto ágrafo
Suspenso em um invólucro de nuvens.

Quando fizestes do corpo a nudez
Negastes a luz para fechar os olhos
E ver como as nuvens ficam nuas
Magenta, madureza, música de pisares

O céu. Mas ao vê-la, luz interior,
            Tudo isso sabia de cor

            Como em ti a entrega de um corpo.

sábado

Na escuta de outros rumores




(o que se faz escuta de outros rumores
se inventa nos sonhos mais antigos).


Ao segurar uma lupa confere
Entre sombras essa matéria
De efêmero.

Aproximas aos sinais da terra
O nome a qualquer profecia
De futuro.

Poderíamos nos agarrar em raios de sol
Vestidos de capas azuis celestes
A estampar em avenidas
Os sons desgarrados

Entre o saber e o medo, uma saída
Aos abandonados
Aos que silenciam no olhar

O que percebe que entre a relva
Adormecem os sons os sonhos
As selvas e os gestos recolhidos
Por qualquer estação da existência.

Alguém ao longe ecoasse: fosse
Em tempo de colheitas
As semeaduras do estágio
Anterior a fragilidade.

Mas o futuro em flauta
Ascende na andança
Trajado de árabe mouro
Galopando mui eloquente
Desfiando em punho
A espada do destino a lança
Sobre o gesto e dança
O sinal da linguagem
Em consciência onde a palavra
Toma forma e desfaz
Da matéria iniciática
O seu percurso de borboleta
Negra metamorfoseada
Em asas andaluz refletidas
Em azuis, em dois olhos

A aprender a ciência secreta
A sombria névoa dos animais
Desgarrados do bando
Sozinhos, nômades, ao sol. 






O mar inteiro dentro da voz soletra sóis e chora quando se derrama em cântaros

segunda-feira

Anoto em caligrafias brancas


Anoto em caligrafias brancas
Um pedaço de vida rasurado
Como seria vida
A lida que aquece a linha
Sem esse laço perdido?
O sol nos amarra em um raio
Para o mundo afogar
E dentro da ciência do amor
Revivemos essa tarde de abril
Com nome de despedaço
Eu que lhe darei devaneios
Para a sintaxe do corpo
Condensar o real em memória
Quando os ruídos das pedras
Secarem o nome debaixo de lágrimas. 

sexta-feira

As declinações das rochas



Deságua ao divã
esta estranha mania
de desabitar as mortes
nesta manhã, as linhas de luz
ardem as ramas de um coração
anões enterram crianças
que choram aos peixes
de um mar radioativo
gaivotas recolhem voos
em asas uterinas
um silêncio declina as certidões
quando ainda não
nascemos para o mundo.


Poesia inédita Carol De Bonis

terça-feira

Debaixo d'água os rumores




A esfinge devorou os mistérios de um dia
as manhãs ainda traziam o cheiro de um pão quente
mas tarde ficou o espírito sobre a névoa
de um céu prata.
Foi nos dado labirintos
para nos perder intactos
melhor seria perder-nos
a recriar esses mistérios
toda parte ocidental de teu corpo
se traduz na margem que aceno:
com quem falarias
se os rumores das frases erraram nossa extensão
nos perderíamos por esse universo
em pronta entrega de qual ciência?
Debaixo d’ água os rumores do mundo
a existência perecível
como se fosse tempo de regressos a casa
e a trajetória inexistente
em silêncio das coisas desaparecidas
guardar sobre a alma o ser movente
dessas areias que esfregam sobre teus pés.

domingo

Fazes-me Falta - Inês Pedrosa

A verdade. Outro valor magno circulando como um sumptuoso iate vazio. Quantas vezes te menti para ser fiel à verdade do meu amor por ti. Ou do teu amor por mim, o que vai dar ao mesmo.

O último dos meus namorados, não foi por me ter cansado dele que o deixei. Foi porque se me esgotara a juventude, essa capacidade de acreditar absolutamente em tudo de novo a partir das cinzas, ele apaixonou-se mesmo por aquela jovem assistente de que tu suspeitavas. E ela alimentou-lhe a paixão. Queridíssimo. Eu tinha que ser forte para que tu não te preocupasses comigo. Eu tinha que ser forte para ser digna de ti - para te enervar, para te desconcertar, para merecer o teu amor por mim. Porque não lhe havemos de chamar amor?

Não importa o que se ama. Importa a matéria desse amor. As sucessivas camadas de vida que se atiram para dentro desse amor. As palavras são só um princípio - nem sequer o princípio. Porque no amor os princípios, os meios, os fins são apenas fragmentos de uma história que continua para lá dela, antes de depois do sangue breve de uma vida. Tudo serve a essa obsessão de verdade a que chamamos amor. O sujo, a luz, o áspero, o macio, a falha, a persistência. 


Inês Pedrosa



As conchas as cigarras e outros murmúrios



O murmurar das conchas onde antes era silêncio. Crescer ocorria por sons, por tilintares ao que antes escutasse o correr pela terra vermelha sujando a saia de tule branca. Crescer era correr pela terra de barro batido, sujar o branco em vermelho era apenas um acréscimo. Os remos de um barcos são apenas acréscimos, uma camada de sentido a mais. Crescer devia saber da embriagues dos homens e pensar em Deus como um ente espalhado em grãos de areia pela pele transpirando sal ou uma espécie de saudade pelo cheiro da comida de nossa terra, devia ser reconhecer em todas as imagens e rostos apenas sons e cheiros, ou olhar pelas coisas e vê-las ressoando sua inteireza no mundo, objetos e pessoas ressoando como sinos, um compasso. Mas são as coisas pequenas de quando ouço aquele tilintar de guizos de um circo na chegança da pequena cidade ou mesmo o sino de um cinema mudo e uma mulher estrangeira de si mesma debruçando-se sobre o balcão em vermelho uma flor de algum posto de gasolina num deserto da Argélia ou mesmo Atacama. Os objetos ressoam quando passam por mim: deserto, ônibus, madrugada. Pensei que nunca me perderia se pudesse lembrar daqueles nossos momentos juntos mas é que voltar para essa cidade desconhecida já pouco importa o chão sobre nossos pés, voltei a acreditar em Deus e posso reconstruir nosso filme restituindo na memória os gestos fugidios de nós dois. Sei até a cor preferida de teu céu, um azul celeste invade aquele sótão da memória e não faço esforço para sair dessa pele e passar para tudo aquilo que respiras. É verão eternamente escuto as cigarras, onde era silêncio. 

Da lua maia sem derramá-la


Aprendi a contemplar o náufrago       

De um verso que li e esqueço
Das páginas que viravam sozinhas
Assim ao caminho carregar
A ânfora com os líquidos
Entregues ao mar.
Após perder-te
Entrego tudo
Ao que não se esconde em ficção.
Calo e escuto o poço me afundo
Numa voz sem silêncio
Sem quem aprenda a ficar sobre as rendas
Fiar invisível e minúsculo
O desejo desse desejo
Outra vez. 

segunda-feira

Desfolhas ao céu

Cores diluídas pela íris
Clara a dúvida de seguir suas
Pupilas ao vento. Promessa de uns
Olhos de exílio que regressassem
Ao som do céu. Em marcha a contagem
Ecoava passos pelas ruas
E chegava a um quase maio.

Maio pode ter cara de despedaço.
Mas pode alçar trilhas de novas disposições,
Caminhar no meio deles, encontrar o céu
Que nos leve errantes a outro céu
Sobre ele aquele perder-se
Mas, nada se perde,
E sabiam aos que procuravam
Na voz. Nada se perde,
Se não há o que se perder.

Perder-se como quem abre florações
E serena seguidamente em decomposição.
Decompor-se quando naquele lugar
As ruas se abrissem em manhãs
Para desfolhar sobre os olhos
O orvalho. E quando
Caminhássemos pelas ruas,
As vozes em uníssono saberiam:
Primeiro estado mítico, a floresta íntima.






Buenos Aires