domingo

Do calendário lunar


À TS do jeito que me contou.

Após terminar o calendário de seis noites e cinco dias, uma para a madrugada da lua das mulheres que entornavam madrigais, ele diz, aqui entre nós permanece o enigma. Os olhos das mulheres eram esfinges, armavam-se as fugas e todos perceberam que é o silêncio que recobre certas coisas. O rei abriu o silencio com os dedos dentro dele viviam sete mulheres em nomadismo elas traçavam fronteiras na areia e logo que se cansavam de uma terra desenhavam outras. Dentro da esfinge repousava o segredo de uma madrugada a mais, desde que o rei fora obrigado a igualar os dias do ciclo lunar com o calendário real houve uma descomunhão entre os seres todos da cidade que pareciam que circulavam entre a fissura do real e irreal, erguiam-se muralhas, travavam batalhas, espadas derramavam sangue.

O tempo entornava dentro do tempo, todas as palavras derivavam da ciência de Ollan*, quando o estudo da ciência da letra se dava durante doze anos. O rei chamou Walugui e disse-lhe que escrevesse a história dos dias. Walugui que era um sábio e louco ao mesmo tempo sofreria grande provas se não fosse capaz de escrever, mas para aprender a escrita deveria se submeter a Ollan estudando mitologia e memorizando as trezentas e sessenta das histórias que correspondiam ao calendário lunar. Walugui não acreditava ser capaz porque não acreditava na memória acreditava sim na paixão, passou a circular noite e dia pelos arredores do castelo observando a natureza o sol e as noites estreladas. Chegou o dia e a única coisa que ele sabia dos olhos da esfinge era o seu decifra-me ou devoro-te. Decifrar era aprender uma outra língua e não aquela dos sábios gregos e troianos que seu povo falava quando evocava as guerras e o sangue derramado. Negaria os vikings e todas as batalhas. A beleza não se via, os homens nasceram proibidos de ver a beleza, os poetas apenas nomeavam.

- Aproxime-se Walugui e diga – disse o rei poupando-se dos longos discursos da realeza.

- Fechar os olhos é uma forma de traição. De tanto olhar comecei a falar palavras que de começo não entendia. Palavras do delírio. Nós homens somos observadores dos céus, não há método para dizer que existe uma madrugada a mais no calendário, nem que há um descompasso entre o calendário lunar e o calendário real, o que há é a guerra desse fino tecido de homens que acreditam em lucidez e paixão. Navegar é preciso por muitos mares...

Um longo silêncio,

- Como percebi essas longas noites as estrelas voltaram ao lugar normal, de onde, elas nunca deveriam ter saído. A madrugada a mais é desejo dos homens, é velamento ela não se deixa capturar em seu mistério. Alguma coisa a revela, mas é feitiçaria.

O rei ordenou que prendessem Walugui, disse que ele descumpria a lei de Ollan a mais alta sabedoria e inventava fábulas sem destinação. Disse também que procurassem a mulher com que Walugui tivera aquela conversa, encontraram-a vagando pelo deserto ela falou, no que consta na história, que aconselhou Walugui a ficar em silêncio. A beleza não é dada aos homens a ser vista nem tão pouco dita.




*ler Borges; cinema.

terça-feira

Murilo Mendes.

Metade Pássaro

A mulher do fim do mundo
Dá de comer às roseiras,
Dá de beber às estátuas,
Dá de sonhar aos poetas.

A mulher do fim do mundo
Chama a luz com um assobio,
Faz a virgem virar pedra,
Cura a tempestade,
Desvia o curso dos sonhos,
Escreve cartas ao rio,
Me puxa do sono eterno
Para os seus braços que cantam.


* * *

Poema Essencialista

A madrugada de amor do primeiro homem
O retrato da minha mãe com um ano de idade
O filme descritivo do meu nascimento
A tarde da morte da última mulher
O desabamento das montanhas, o estancar dos rios
O descerrar das cortinas da eternidade
O encontro com Eva penteando os cabelos
O aperto de mão aos meus ascendentes
O fim da idéia de propriedade, carne e tempo
E a permanência no absoluto e no imutável.

* * *

Reflexão nº1

Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
E a circulação e o movimento infinito.

Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.

* * *

A marcha da história

Eu me encontrei no marco do horizonte
Onde as nuvens falam,
Onde os sonhos têm mãos e pés
E o mar é seduzido pelas sereias.

Eu me encontrei onde o real é fábula,
Onde o sol recebe a luz da lua,
Onde a música é pão de todo dia
E a criança aconselha-se com as flores,

Onde o homem e a mulher são um,
Onde espadas e granadas
Transformaram-se em charruas,
E onde se fundem verbo e ação.


                                                                          Murilo Mendes 

segunda-feira

Meu amor,

escrevo para dentro
muda, o amor em silêncio
amando em silêncio
a estrada não vai de som
em som à sombra é um filme
antigo mudo mundo



                                      esse moço
                                      não entende
                                      não entende
                                      ele não entende



ontem eu era outra
você não é o que parece ser
ontem o amor era palpável
hoje fica um grão do desejo
o meu desejo
amanhã uma parte dessa parte



escrevo para fora transbordando
amo para fora
amo esquizofrênica
vou por todos os caminhos falando
de amor.

domingo

O amor essa caminhada.





I.

Despertava as águas e o corpo seguia: 
Insuspeito derramava o perder-se do contorno
Da pele para habitar a fronteiras, as bordas.
Pela janela um filete de luz do sol anunciava amanhecer
Já não reconhecia a cidade, ainda bem
Dentro dela sabia da superfície de prata
Da noite e das estrelas e de toda lua branca
Naquele quarto crescente.


II.

Um sentimento indecifrável: decifra-me quando o laço do simbólico se rompe fica a fenda qual se renuncia. ao renunciar perde-se uma dose de sentido, uma dose de fio que deve se untar, uma dose de corda que puxamos para não perder o fio do labirinto da mente. Essa corda esse elo nunca existiram são enigmas claros que pairam dentro do mais azul da dor dos chicotes das águas do mar. Não há o mar eu repito ela cisma obsessiva e distraída ao olhar muito adiante. Juntos tecemos novas teias e renomeamos o mundo.


III.

Resolveu que iria ter nesse papel a salvação daquela espera antiga. Sabes bem do que eu digo. Você sabe bem do que se trata?



Uma lógica que fosse suspeita secando a aragem num céu de volume azuláceo. Como fizesse calor por essas terras e ela tão somente caminhasse e caminhasse. O meu amor essa caminhada, entende?

IV.


Sabes bem do destino. Quer mudar a rota denunciar as injustiças  quando sem querer avista algumas mulheres chorando numa roda, pensa que avista depois de um breu, ela que se conformou com a miopia naquela cidade cinza, ver demais era ruim, tudo feio por toda a parte as placas e os sinais que nunca levavam a lugar algum, a cidade circular e a ciranda, ver demais abundantemente para quê, acho que minha miopia regrediu.



Aconteceu que chegou naquela terra vazia numa madrugada, sentou-se numa portinhola que era em verdade a porta de um banheiro feminino abandonado na beira de uma estrada próximo a um posto de gasolina em ruínas, começou a soluçar desse soluço logo veio um choro entrecortado pelo peito palpitante, ela havia corrido para chegar até lá, estava salva embora abandonada.

É sempre assim. Uma voz da escuridão fala.eles sempre deixam-nas por essa estrada algumas chegam em prantos muito alto. Era mais uma daquelas mulheres.   

Trançam mais uma ciranda


Desapareceu nos meus ombros estava ali tão perto           
no olhar que vejo há aqui o mar sim e eu não via aquela imensidão
dobrada como pêssegos nos ombros do mar o avesso
logo pensei que você pudesse estar onde não se via
naquele seu coração de mágico

mesmo aqui pensei em ficar pé ante pé
no abismo nua me atirar
num amor que se morre
pensei em dizer mas o dito não alcançava
a distância do verbo havia no lapso entre
vejo essa paisagem em minhas retinas
suas claras pupilas juram
não haver a paisagem

sobre o branco estava lá e não estava
eu estava lá e não estava
mas, veja, não sou uma pessoa
ontem telefonaram e mataram a personagem
na verdade, não me importo em sê-la
somente algumas caligrafias
do jardim da infância

o que se tem aqui são os aedos
cantando rente aos meus sonhos
trançam mais uma ciranda
para enfim perder-me.



um amor. desordenado






terça-feira

o exterior que nos contorna é azul branco e laranja.





vice-versa

daqui de dentro o extremo do mundo é uma abóbada de curvas coloridas.
o exterior que nos contorna é azul branco e laranja

quando à tarde.


uma membrana muito fina em mutação de luz de consistência e cores.
uma bolha de sabão refletindo caos

de um arco-íris.


visto desde suas entranhas o exterior não é geométrico mas orgânico e
mutante.

as estradas são longas os espaços medidos. de vez em quando uma nuvem
escura cuneiforme pende sobre a terra como


um cordão umbilical.


já não se sabe de que lado fica o corpo do mundo.




Marcos Siscar ( Interior Via Satélite).