quinta-feira

Despedidas



                                                           DESPEDIDAS

ao compor uma viagem de despedida
como ir para longe muito longe numa trilha guiada de sol
 se despedia pelas falas, iniciática previa
o começo de uma conversa, ou um relato de uma estória
ao feitio das fiandeiras em mais outra além
ao ponto que não percebêssemos o fio o traço e a renda
o  remendo de uma e outra adiante.
caminhava muitas trilhas seguidas pela palavra
e  despedia ao pronunciar:
a voz entoava um violino.
despia em pedaços dos passados
árias melancólicas, outros voos dos pássaros.
ouvíamos como quem guarda consigo o mais longe espaço
as casas com suas portas e janelas abertas sem distâncias
onde crianças brincavam com as cordas de carretel
 as linhas eram nuvens e o azul em algum planalto desenhava
 janelas debruçadas com seus amarelismos
personagens de papel sombreados na tarde entrecortada
quando o sol tocando mais perto as pedras do chão
arrastava o destino pela ancestralidade as terras
de uma voz distante qual entoasse ao violino.

quarta-feira

Andar a cavalo para partir



Andar a cavalo é sempre para partir.

Andar a cavalo voa nos cabelos o vento
Voa nos ventos o olhar do horizonte
Onde me acena a tela da infância
Numa árvore fronteiriça até o limite
Onde ainda me reconheço 

No vento ar remoto feito um filamento
Imemorial a esvair-se do chão
Sem as rédeas altissonantes
Do corpo em dois duplos
Se espelhando
Esperando 
Do cavalgar
As toadas partidas

Andar a cavalo destoa o olhar tão derivado
dentro do mar
(não há o mar mas me acostumei a ver
como falta de quem sabe chorasse
não há o mar só a lagoa eu via a lagoa)
contornando chegando e retornando circular
em mim quem sabe inteira
no exato das suas margens
em que esquecem do que fui
na entrega para nascer
em uma árvore.

Deslizava solta pela a ciência dos pássaros sem pouso
A cavalo a liberdade tem nome azul
Asas nos calcanhar
A moldura seja a janela pela qual acenas
A margem da distância
A separação anterior
Entre a vida e o amor

Da perda a secreta pronúncia dos que partem
Para chegar portando as flechas
Lançadas a cavalgar.


*poema com muitos laços soltos iniciado há mais de um ano, modificado mas nunca pronto, nunca entregue assim num dia como esse em que é preciso lapidar o lirismo, em que é preciso cavalgar.

Branco o instante


uma mão se move tocando ao ar a ciência do pássaro sem pouso, o quarto escuro, mas só aquilo que tocas, toma de primeiro um enigma. Pode ainda pertencer ao antes? vê uma mesa posta, coberta por um pano escuro. O oráculo, copos de cristal tingem o obscuro do nome num soletrar lá fora os corpos de ar adivinham palavras nomeiam o amor com sua luz vazia no meio de uma existência.

terça-feira

Galope


    CAROL PEREYR E MÁRCIO PAZIN (Composição Roberval Pereyr)


Onde a luz se fragmenta




Seguiam a mesma direção. Escute: não posso ficar, enquanto segurava uma trouxa de roupas foi se dirigindo pelo corredor, chegando ao fim encontrei portas abertas. Parei, encostei a voz precisava de paciência. Quase largo tudo e saio, mas deixou-me nessa noite entre as coisas, as coisas aflitas fitam-me num giro como se ao redor delas pairasse uma outra existência. Um sopro que com suas ondulações chamasse a mim. Fujo naquela mesma madrugada e saio, continuo ladeira abaixo até o sol encarnar nos olhos. Bambeio dentro do corpo, da outra vez supus a loucura, os medicamentos pesavam e tremia ao sol. Ela dizia venha é quentinho um pouquinho, precisava de mais ciência eu ficava dentro da casa e quase sempre vinha aquela sutil aflição dos objetos em sombra lhe inspirando outra vida, existência leve e superior. Calo o grito em silêncio maior, a ladeira abaixo.
Ousei falar de literatura, desentranhar a poesia num mundo que eu não devia a mínima satisfação, doei-me de corpo a escrita primeiro por prazer agora, por vício não tenho outra solução, não há salvação, nem outro remédio, não falo de psicanálise. O que falo de mim deseja falar em mim, algum desejo que me trai. Meus gestos significam mais a você do que a mim que importa qual direção seguir: cavalo sem rédeas. É nas esquinas onde espero, vontade de te levar nas praças de algum sol de inverno, quando os movimentos aceleram detenho, tenho deixado muita coisa pra trás.
Sabe o passado não esquece, as feridas não cicatrizam e esse salgado forte na sua boca, as lágrimas que escorreram, foi só para você saber que eu não esqueci, e faço como todos não esqueço, atormento, me detenho em pequenas fagulhas e fragmentos seus e você pensa que eu enlouquecia. Não, eu cavo as feridas, as provoco sabe? Você dizia eu sempre destruía as coisas, prefiro assim, mas olhe, preste atenção em mim se você me ouvisse não ficaria assim. Por todos os lados, acima abaixo me procurando, cavo faço a casa na concha me encolho, não sei me defender, deve ser por isso.
O vento na pele parece a sensação mais pura e límpida já não estava por mim quem a seguia, era eu lamentoso e ingênuo. Mas olhe, não enlouqueças, seja firme, qual voz saía lancinante a meus ouvidos, o vento. Não atire esses cacos essa louça de cristal não deixe que a luz desse sol se fragmente em nenhum ponto disperso, segue-a. mas ela contínua numa eternidade me invadindo todos os poros, entregando o corpo caminhante e febril. O olhar longe, estar onde, espairecia em fugas silenciosas quando nada detém, nada segura desse tecido da vida. Eram suas as horas? Havia luz que te acompanhasse? De mais ninguém, mas o que poderia a acompanhar, o tempo o trauma? -  horas que corriam imensa intensas, adivinhava o céu.
“Não, eu ainda não abandonei essa casa”. Volto, violentava o passado não por uma história mas por uma mulher, era inteiro em erosão em fragmentos largados, restos e réstias. A imagem rebrilhava o espelho, olhava em meus olhos e suspeitava a partida. Álbuns de fotografia, alguém a me chamar no quintal de antigamente, são difusas as vozes. Não, eu nego a casa e vou por essas trilhas, uma canta e carrega o condão da eternidade, outra repete e age, outra dança na chuva. Nessa confio ainda que com aflição cega, aflição de entrega, meu ser inteiro nas primaveras de algum cheiro de maracujá, rosas nos cabelos de maio, junhos pelo rosto a tristeza enrugada nos cobertores da espera. O que entregar quando vierem me buscar? Meu lar paira uma poeira, tudo rebrilha e as coisa parecem tão quietas, mas se movem tudo parece possui uma estranha delicadeza, tão frágeis quando o sol toca, tão silencioso quanto, quando posso me possuir nesses passos que. Deixo a sala, abro as portas, deixo a rua ladeira abaixo avisto o sem fim estou sem mim. Pelo menos, voltamos a seguir a mesma direção. 



pequeno trecho de um conto que apareceu em papéis avulsos, soltos na gaveta.

segunda-feira

Uma espécie de perda

Usávamos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados, gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos. E estendemos sempre a mão.

Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,

( - o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.

De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha sua cor mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.

Não te perdi a ti,
perdi o mundo.                 
                                                                            Ingeborg Bachmann 
                                                                            


INGEBORG BACHMANN





Imagem: François-Henri Galland

sábado

A palavra de hoje é naufrágio


Deixar viver é tão mais leve perdoar com a certeza de cada manhã seu pensamento alvorecer
dançar a música do vento ao meu redor sem descrever apenas a poética do instante solta
arquetípica mitológica num calcanhar alado: tua prisão ressurge das águas caudalosas?  
desenho sonhos em águas circulares só quero a caravana das sereias
a armadilha das vozes antigas, no exato momento que o tempo ressurge,
para reconhecer a palavra de um naufrágio
costurando nas veias um tecido turquesa
para cismar que o dia foi feito só para isso.