quinta-feira

muchacha, ojos de papel

Oração dentro de uma fotografia.

O dia era nublado sua memória tornava-se nublada resvalada pelo esquecimento, fora o tempo de escrever e ela apenas deixou que tudo passasse. O passado não chegava com hora marcada nos batendo na porta, ainda esse passado ficara na outra margem do rio, bens sabes, uma mulher não se banha duas vezes no mesmo rio.

Se não fosse pelo fato de que ninguém hoje em dia se banha mais em rios, se não fosse por essa civilização, o mesmo motim das brigas primeiras enquanto ela inteira nômade e selvagem inteira feroz como os animais suas cidades em senhas silenciosas abrindo descampários infinitos, ele inteiro racional e civilizado como se os séculos das luzes refletissem em seu corpo, algo mais do que as águas refluíssem.

Não entro no rio para me banhar, vou me afogando lentamente até que encontre demoradamente essa outra que me acena e me socorre no futuro.
       
Contruir a ciência com essa mulher do futuro, ela que me acena com aquele vestido branco de primeira comunhão. Uma confusão, a mulher que me acena se parece com a outra que se despediu, ambas com um vestido engomado sujo de terra vermelha na bainha.

Tento lhe perguntar, a voz se perde, roucamente me saem algumas palavras -  te deixaram brincar no barro em dia de festa? - ela não me responde e eu me sinto a mais inútil dos seres, certamente deixaram-na, a resposta pode ser muito óbvia.

Contruir novamente, a ciência da roda de bicicleta, do comboio de corda, da semente para colher do sêmem aves em dois pares de olhos verdes.

Se não fosse pelo simples fato de haver uma memória em tudo isso talvez não seríamos tão humanos e não haveria ninguém que aqui escrevesse pela memória que se abre ao ver a fotografia.
       
Um mundo inteiro passou por ali, uma vida inteira, bens sabes.
Assim se despedaça um dia na moldura de uma fotografia antiga. Olhando-a nasce um pedaço de mundo. Poderia ter sido, poderia ter sido a vida inteira, não foi. Depois os olhos partem mais um pouco de tristeza. Ela para e pensa na amiga morta em Judy.


                                  * * *




quarta-feira

Reparação.


   Fazia quinze anos que não se viam. O grande amor ficou suspenso como um samba, mudando de calçada quando aparecia uma flor. E de repente, com todas as improbabilidades, a flor aparece na calçada de cá também.    
    Entram na agência bancária. Tudo está seco e cinza lá fora, como um feriado de repartições públicas. Parece o fim do mundo, com pombos anunciando que não é bem assim, não é bem assim, e papéis sujos tentando se transformar em pombos mas sempre regressando ao meio-fio. Venta. Um vento cinza.
    Mas a camiseta dele é vermelha com letras brancas e por um instante ela acredita ler ali: GORMENGHAST. Por que diabos Gormenghast? Sentados, esperam por alguém que está na fila do banco. E a conversa vai aproximando seus lábios, até que se beijam. Quinze anos depois e assim de repente. Ela diz: se eu te disesse como pensei em você durante esse tempo todo. Ele diz: se eu te lembrar das cartas que te mandei e que ficaram sem respostas. Ela diz: mas eu era tão nova ainda.    
    Sabe que ali o mundo se recria. Será que vai reconhecê-lo nesta camiseta vermelha? Será que a vida dele é a mesma? A cor dos olhos sim. A cor dos cabelos não.
    Ela pensa com força para fixar este mundo. E acorda com o vento batendo na porta.

Adriana Lisboa (Caligrafias)

segunda-feira

Inefável e Rumores de mulher

Equivocar o caminho
é chegar à mulher,
à mulher que não teme a luz.

(Lorca - pequeño poema infinito)


Rumores de Mulher


"estamos condenados à sede
embora em nós se cumpram antigos poemas.
nada me fará culpável
a única saída é entrar
ser engolida, cheirada, devorada.
pisei um círculo,
pensemos
há flores abertas para ninguém
obedeço como um refém alucinado
escrevo nos contornos da tua boca a palavra intocável.
nenhuma inversão
nenhum artifício
só a linguagem (e não a minha língua)
escorrega pela minha cara.
agora direi: o girar sobre teus olhos me exalta
e só um poeta poderá compreender o que digo.
já não sou meus atos
já não sou eu,
apenas a resistência aplicada ao reverso de um ângulo.
ouves a pedra cantar,
só a fantasia me torna bela,
bela como um animal incontrolável,
o desejo é o único que permanece intacto
puro é igual a feroz."







(...)                                                                        Nusch

sábado

As raízes de uma árvore


na soleira de madeira pisa de leve entra despercebida no palco
o desejo se quebra ao desfolhar da rosa são corados os pêssegos
enquanto isso desmoronam cidades e crianças sonham 

abaixo do assoalho você pensa no tamanho do mundo
nas raízes que não vingaram debaixo da madeira
você conversa escondida com as raízes de uma árvore

convençe-las da solidão
daquela noite em que tudo perdeu seu contorno
o mundo era imenso quem mais saberia debaixo de teus lencóis d´água

nos fundos da casa armam uma traição
fazem amor e revolução no sem fim
um filme passado em qualquer forma de desejo,

uma forma gasta de saudade
assim se repete o dia & os anos
repetem a refazer o enigma

vês nas sombras a arquitetura dessas reentrâncias
a flor perder seu visco
escutas os passos ao redor de ti

quero antes uma terra onde possa semear
afundar-se no risco de si mesmo
mas reinventar o inefável

terra da infância nas arcadias
vigiavam os ausentes
que nunca pisaram na lua.








domingo

Hoje o mundo veio a forma


Hoje o mundo veio a forma
Veio na forma que minhas pupilas circulam
A claridade. Esse verão imenso essa aura
De um sinal aéreo que renasce a circular
Acima de mim. E dentro a puxar o cordão
Do relógio essas coisas dos jornais e da guerra
Trouxeram os mantimentos? Como se metade do tempo
Soubesse e a outra metade fosse novamente o tempo
E que ele viesse a mim novamente papável
Mais preciso quando incomunicável.
Não serias tu que mentirias a mim sobre o mar
Afinal o mar era só a forma em que metade do mundo fala
O resto envelhecia nos anos dessa terra
Pisada dos passos e dos poços a quem socorre
Do corte a cicatriz. Mas falemos da infância
Que parou com a ampulheta desse eterno cismar
Metade do mundo sei veio até mim
Mas sem palavras nem coisas veio como uma distração
Largo as mãos a ensaiar fantoches
Distrações e sem falas uma espécie de dança
Para ter certeza que encontrei um socorro
Que repita deserto e coração
Que repita coração campo aberto
Onde o cavalo parte depois que o mundo se despede
Onde podemos falar a partir das pedras.


Poesia Inédita Carol De Bonis




The End of Time (Barnosky)






segunda-feira

De tudo, meu amor, fica um pouco: resíduos

De tudo meu amor fica um pouco

O amor consumido pelas bordas
quando os limites do círculo se apagarem
o laço se lança ao centro
se arrastas performática


Trazendo na boca rosas as ancestrais de Atenas
e no núcleo atenta
outro do amor e um risco
rasura cicatriz


O amor que esquecemos de se dar
O amor de bocas mastigando pétalas
O amor dos corpos pássaros torrentes
O amor pedindo outra embarcação
O amor que se deixa e se parte e reparte
O amor dos abandonos reinventando o inefável


Porque é a convulsão de humanos
uma ilha se esvaindo
o vento desterrando o cais


Qual rodas de um mar
imerso desaguando
nas calhas do coração.

Sinfonia Selvagem

Rumo de abismos

Subo degraus sem escada
Ouso dissolver na memória
Nossos toques indivisos.
Me transmuto em muitas,
E isso não é fácil,
Como caminhar descalça
Renascendo musgos
Ervas dentre os pés
Desenhando caminhos
À possível lunação
Descascando aposentos
Primitivas grutas
Imersas embarcações
Interiores em frestas.
Faço um pacto com a dor
Reinvento a casa
Crio um outro ritmo
Na transparência
Ao avesso do vento
Que balança as raízes
Fora da terra.
Com vendas nos olhos
Ainda que não tenha
Labirintos previsíveis
Me renasço na beira
De abismos.


Setembro

Compor azulejos
Com fragmentos
Da memória
Recolher suave
Esquecimentos
Quando tudo
(seguro em essências)
São cinzas.

Transpor ao nome
A imensidão dos pássaros.
Recostar gaivotas
Em troncos
Palavras em
Asas
Aves em
Ninhos.

(poemas de 2006)