sábado

Poesia de sábado [Rosa Alice Branco]

A mãe escavada nos dedos

Coração escavado na rocha,
um buraco onde as crianças se agarram
enquanto alguém soletra o teu nome
na maré que sobe
e vozes miúdas chamam pela mãe.
Depois é preciso esculpir uma rocha
em forma de coração
de plástico de cinza de carvão
porque a pedra dói nos dedos ao entardecer
quando se vão as últimas palavras
e não há ninguém para enganarmos,
para nos podermos enganar
quanto à matéria de que é feito o coração.
As rochas ao longe são todas iguais
e o meu corpo submerso
nunca sentiu o ofegar das pedras
quando o mar as deixa.
Vê, aqui é o lugar do coração.
Quanto custa trazeres-me à superfície,
abrir os dedos e sentir pulsar neles
o nome da mãe que soletramos
sempre que nos chamamos um ao outro
quando a maré baixa e revela o buraco
de que é feito o coração?

Os cheiros de Maio

Também a casa. O que resta dela
é o mapa onde percorro
os caminhos que tracei ao longo dos anos.
É fácil perder-me, o papel desfaz-se
quando rego a planta da casa,
o verde com que saio das trevas
e me orienta o atlas
onde te respiro a presença.
És mais tu do que antes
quando o teu riso dançava na casa,
uma casa que girava sobre os calcanhares
do mundo
e eu era a cintura da ampulheta
por onde passa o tempo.
Agora estou de cabeça para baixo
e tu sobes por mim
até aos olhos com que me vejo correr
para o teu colo
na casa que guarda os aromas
com que amassas o milagre da presença.


                                                       Rosa Alice Branco (Soletrar o dia)

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