terça-feira

Caminho (por Adonis).


CAMINHO

Caminho e atrás de mim caminham as estrelas
até seu próximo amanhã
o segredo, a morte, o que nasce, o cansaço
amortecem meus passos, avivam meu sangue.

Não iniciei a trilha, ainda

não vejo nenhum jazigo
caminho até mim mesmo, até
meu próximo amanhã
caminho e atrás de mim caminham as estrelas.

***

AMOR

Me amam o caminho, a casa
e na casa uma jarra vermelha
amada pela água,

me amam o vizinho
o campo, a debulha, o fogo,

me amam braços que trabalham
contentes do mundo descontentes
e os arranhões acumulados no peito
exaurido do meu irmão atrás
das espigas, da estação, como rubis
mas rubros que o sangue.

Nasci e nasceu comigo o deus do amor
- que fará o amor quando eu me for?


***

1. 


Manhã

        como tinta a manhã
        saindo do sangue da noite
        traça o rosto do espaço
        escreve o estado de seus amantes.
Nela me funde
a química da ferida.

2.


Acordei perguntando à aurora sobre você:

Já acordou?

Vi seu rosto desenhado em cada galho

em volta da casa.

Tirei dos ombros a aurora: Será que ela veio

ou é o sonho que me confunde? Perguntei

ao orvalho nos galhos

e ao sol: Ela leu

         teu passo,

         astro?

Que parte da porta você tocou?

        como foram parar ao seu lado
        as rosas e as árvores da casa?

Estou a ponto de dividir os meus dias, a ponto de dividir-me:

de um lado o sangue, de outro o corpo - 

        folhas num mundo seco

        arrastadas pela fagulha.


3. 


A mão da noite

        não bateu à nossa porta
        não abriu nossa porta
nos esqueceu, acendeu
        uma luz dentro de nós
        e a luz fez tremer seus faróis,

nos inundou nos devastou nos marcou as entranhas

       tudo o que a luz não via
       e as palavras não diziam. 


***

FIM DO CÉU

Sonha em jogar os olhos nas
profundezas da cidade próxima
sonha em dançar no abismo
em ignorar os dias que devoram
as coisas, os dias que engendram as coisas
sonha em te levantar, em fluir como o mar
em apressar os segredos
começando um céu
no fim do céu.
                                                                                                 



ADONIS *



*Nascido em 1930, na Síria, publicou dezenove títulos de poesia além de ensaios e traduções. 



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